sábado, 26 de julho de 2008

O amor pode ser azul

Diz-me qualquer verdade acerca do amor
Como as saudades são apenas um eco
Tal com a dureza das pedras
Um fardo num vasto caminho
Num lugar onde há sol a pele não toca
O ritmo da direcção do som, não o conhece
O amor pode ser azul, porque é uma escalada pelo céu
E desconhecendo a sua esterilidade cai pela ribanceira
O corpo do rio são sulcos, ferimentos das feras
De danças passadas, essas azuis, as que voaram sem asas
O amor pode ser azul, como o mar, e arruinar-se num afogamento
No sepulcro que vem de onda em onda
Chegou o tempo da espera: mais um violento espaço frio
A atmosfera metálica, essa espera cinzenta
Porque o amor é sempre azul, e dói quando chega ao céu ou ao mar
para no fim desarrumar o coração
com essas vozes colhidas
no céu debaixo de um lugar
que nem tu darias explicação
tu onde a água corre
e deixas que a corrente inunde
o mundo se inunde
diz-me onde pára esta canção
que não evoca senão um fio de cabelo
a fragilidade com que temos
e tudo perdemos


(Paul Klee, "Ad parnassum")
Querida Sara,

Estou a escrever-te porque sempre te escrevi e escrever faz parte de mim. Saber-te é esse endereço onde nos abrigamos e somos tiras de papel ao vento nesses papagaios de nuvens inacabadas onde crescemos, que se aproximam de tudo o que somos nas nossas promessas juntas, canções e solavancos, que abrimos como gaivotas. Trapézios rompendo os prados, nesse equilíbrio nosso que crepita a rama verde, olhando e penetrando com todos os primeiros sóis os horizontes perdidos que achamos. E se não somos caminhos, somos a presença dos passos.

Sempre tua,

Sofia
A mortalidade do melro

Minha mente é de frágeis golpes
golpeando-se a si mesma,
escureceu impregnando o ar desse aceleramento
que descreve a cinza dos dias que são sombras
e desencontros permanentes

Poços profundos esses pensamentos
deturpando visões indecifráveis

Sou o melro que caí morto do céu

A mudez caída na rua
enquanto um policia passa mais um dia enfadonho
com as suas multas de trânsito
e o lixo acumula-se entre nós dois, entre o nosso diálogo
não passamos de crianças tristes
a quem ladrões conseguiram comprimir-nos a um canto

A vida não existe
perdemo-nos algures na noite
e se voltar a luz da madrugada
é para nos mostrar a cabeça esmigalhada do melro


(Marc Chagall, "The Gift")
Não sei dizer o que é o amor
nos passados onde o amor se cansa,
sentido e vivido, colhido em ramo ou em flor,
o que ele canta sobra ainda nesta dança.

Podia estendê-lo na frase sem sujeito,
fazer dele um advérbio, cabelo sem trança,
vê-lo descer como rio sobre o peito,
inundar o corpo na manhã que avança.

Deixá-lo ficar nos olhos sem destino,
tê-lo amarrado ao desejo que esconde.
E persegui-lo quando parece mais longe,

trazê-lo aqui mais perto, vê-lo pequenino.
O amor voa sem ter de subir ao céu,
encobre o rosto quando fica sem véu.

(Nuno Júdice)
Dizes que de noite pensas que o dia em mim foi em ti e guardas esses pedaços que se dissolvem agora em ti quando o coração é uma casa e lentamente te aproximas da varanda sorrindo e eu aceno-te o ouro das sementes.
A Poesia é a Flor da Romãzeira que Trago no Meu Coração para te Entregar em Mãos...


(Estrella)
Eu Serei a Romã em Flor Espreguiçando-se em Lábios...

Serei a semente que contrai a imensidão!
Sandrina dá um passo, recua, dá dois passos. A primeira reacção foi ficar assustada e arrancar os botões ao casaco. Foi comprar envelopes para escrever a Dário o fixar dos seus olhos, esse seu desejo que não passa, não se perde, que demora dentro de si, porque ao vê-lo passar à sua frente como um caminho de terra onde só os que se atrevem a ultrapassarem-se são-no também um pouco de si - substância luminosa que parece ser a forma da tarde confundindo-se com a luz nos meus versos onde barcos se inquietam na busca, não pelo seu cais, mas pelo seu mar. São essas as fontes que desaguam em ti e em simultâneo onde todos os rios começam… Falta, faltou o que caiu no chão, o que esteve para ser. Sandrina não se pode aproximar mais de Dário, retida, prisioneira, sacudida, sem poder tocá-lo, e aqueles beijos não flutuaram ao longo dos rios, dos lagos, dos riachos. Teriam de lutar… Contra que forças? Contra que forças, Dário? Agora Sandrina evocava São Jorge, pensando no terrível demónio com o qual lutara e na sua nudez, que tanto a fragilizava, mas que simultaneamente a tornava num ser livre e honesto consigo mesma. Do interior suas veias mais subterrâneas vinha o poder de lutar por este grande amor. E seria com um beijo que a porta se abriria.


(Conto de Fadas)
Talvez precise desta cólera
Quando ao descer a calçada
Ela me vem aos olhos da boca
Vomitando-se e gemendo
Nomes e um império
No fundo deixou de ser uma dama
Para ser viúva de uma hora para um minuto
E se há gaivotas à minha volta
Elas são voam apenas por necessidade
Porque são animais de penas
Só isso sabem fazer
Não vendo a imensidão como imagina
Mas somente os olhos dos peixes
Que a sua fome dita todos os dias
Os meus desejos penso são comuns
Não serei gentil porque
Não sou da realeza
Não vou andar a beijar
Quem passa cumprimentando
Gentes que nem sei os nomes
Nem sei se são serpentes
Os meus desejos são comuns:
Rodear-me de rodeios
E também pouco pensar
Para quê olhar o fundo de um rio
Que não posso possuir
Se tudo o que desejamos
Não nos podemos aproximarmo-nos realmente?
O senhor ao lado sorriu-me
Eu nada digo e suspiro
Estes admiráveis botões de rosa
Sabem bem não me tocam
Eu daqui nem avisto o rio
Deixa-me sonhar alto
Diz a rapariga para a mãe
Sonha-se e perde-se a noção das coisas, a sensatez
Se todo é negócio nesta vida
Vai dizer o quê à criança
Que sonhar é um olhar atento
Às ondas do mar
Descobrindo as suas formas incríveis
Nomeando os peixes e molucos?
Não quero que me digas senhor
Eu já disse tudo
Respiro o som das palavras
E elas vão adivinhando os meus pensamentos
Ao descer a calçada
Enquanto a cólera se desfaz nos passos
Se estiveres a dormir, eu não estou e...

Bob Dylan: "I Want You"

The guilty undertaker sighs,
The lonesome organ grinder cries,
The silver saxophones say I should refuse you.
The cracked bells and washed-out horns
Blow into my face with scorn,
But it's not that way,
I wasn't born to lose you.
I want you, I want you,
I want you so bad,

Honey, I want you.

The drunken politician leaps
Upon the street where mothers weep
And the saviors who are fast asleep,
They wait for you.
And I wait for them to interrupt
Me drinkin' from my broken cup
And ask me to
Open up the gate for you.
I want you, I want you,
I want you so bad,
Honey, I want you.

Now all my fathers, they've gone down
True love they've been without it.
But all their daughters put me down
'Cause I don't think about it.

Well, I return to the Queen of Spades
And talk with my chambermaid.
She knows that I'm not afraid
To look at her.
She is good to me
And there's nothing she doesn't see.
She knows where I'd like to be
But it doesn't matter.
I want you, I want you,
I want you so bad,
Honey, I want you.

Now your dancing child with his Chinese suit,
He spoke to me, I took his flute.
No, I wasn't very cute to him,
Was I?
But I did it, though, because he lied
Because he took you for a ride
And because time was on his side
And because I . . .
I want you, I want you,
I want you so bad,
Honey, I want you.
Ainda esse sentido nos meus sentidos, uma direcção que deixou o leme que não vinha com leme, a grandeza do mistério do ser que se segue, sendo seu senhor, possuindo os grãos do seu próprio sangue, um a um, admiravelmente ditando os nomes dos seus sonhos como se estes fossem apenas palavras faladas com a simplicidade de quem tem a sua altura na altura certa e só precisa de crescer mais na criação, quando as suas mãos atacarem as cores, os lápis, as canetas, as tintas e rebentarem com o absoluto.

Ao Dinis


(Antonio Canova, "Psiche Rianimata da Bacio di Amore")
Naquela tarde especial não era assim que os acontecimentos deviam ter acontecido. Sandrina estava a brincar com o padrinho, ele estava a fazer-lhe cócegas e ela tentava tirar-lhe dois euros da carteira para comprar um gelado, quando de repente começou também a brincar com Dário e surgiu um beijo espontâneo entre eles, no dia seguinte outro e depois riram-se os dois muito. Agora lembra-se dessa tarde especial com muito carinho e o padrinho de Sandrinha diz meio a brincar, meio a sério: estou a ver que tenho de ser novamente padrinho...
É impossível retroceder a essa aversão em que as paredes caíram violentas e a boca morreu de canções. A aversão aos fantasmas que eram um encharcado de sombras destruíndo o cair dos dentes nos sonhos para não conseguir comer às refeições e deixar de ter forças anímicas, estar anémica e ser alérgica a todo o pó. Nem havia mais valia, apenas maços de cigarros, cada vez mais caros, pequenos tremores de terra, uns atrás dos outros que não sabiam a nada, quando até podiam saber a terra… A aversão era tanta que nem cheguei a colher os figos a seu tempo porque não me lembrei ou porque estavam demasiado verdes…


(Bela Adormecida)
"This is an automatically generated Delivery Status Notification.", disse-me a senhora do balcão três. Não percebi e segui caminho. Como faz o vento. "Podes querer notificar-me de muita coisa, a minha é uma porta semi-aberta", entusiasmou-se uma tarde um rapaz, que talvez quisesse-se mais conversa do que aquela que lhe poderia dar. Nem todos os nomes das gentes ficam cravados nas nossas pestanas. Uns são desabafos dos dias, desses diários quotidianos que escrevemos e esquecemos de tão reduzidos serem. Se fossem mais escapatórios talvez em meia dúzia de palavras os caminhos pudessem ser encadeados e os seres não estivessem nas ruas, como costumo vê-los, como esse ar perdido, porque voar de península em península é um ajeitar de forma que escapa a muitos. A notificação seguiu o seu caminho natural, por agora foi para o caixote do lixo, quando estiver menos reflexiva, peço outra, e talvez outra mais.
Dinis, a conversa é aproveitar o resultado que está à tua janela, onde eu sou bons dias, boas noites e o resto é presença, como se diz numa noite quente de verão, não há tradução, de tão analfabeto porque ele é a ondulação da relva, onde te espero…