segunda-feira, 19 de maio de 2014


O Rafeiro

 

O homem começou a praguejar contra quem o tinha tornado num qualquer rafeiro numa estrada que ele dizia ser podre. Quem o tentava acalmar era atingido por pedras de infâmias tenebrosas. Ele continuava, agora fazendo previsões cruéis: os vossos campos irão morrer nas vossas mãos, seus cobardes miseráveis. Delirava, delirava enquanto tentavam amansá-lo com a brisa agradável que corre perto do rio. Mas ele, bruto e assustado, era animal sem salvação. Entregava-se às suas terríficas torturas e soltava-as na direção de qualquer alma que passasse junto dele. Massacrava-se ferozmente enquanto os outros homens queriam tirá-lo do seu inferno. Mas ele já não sabia viver fora dele.

História do cigarro

Um cigarro desorganizado cantava ao luar tudo aquilo em que acreditava e mais um par de botas juntamente com as sandálias de um verão abrasador. Ele acendia-se com a força da melodia das estrelas e brilhava incandescente fazendo o furor dos pirilampos. Tudo fervia nele: ideias rebuscadas, ideias floreadas. O cigarro era um conquistador colecionador de isqueiros enferrujados, tinha uma oficina para torná-los requintados. A sua cinza era prateada clara, parecia um rio na época das enchentes repletas de peixes grávidos. Escolhia com precisão as bocas, tinha uma predileção pelos homens com cheiro a terra arada dos campos. Quando chegava à ponta sinaleira, o isqueiro fazia o milagre de tudo recomeçar.



segunda-feira, 12 de maio de 2014


1. Qual é coisa qual é ela cai no chão fica amarela?


2. Qual é coisa qual é ela cai no chão fica preta?


Respostas:


 


1.                  É um sol que se transformou em gelatina de ananás.

2.                  É uma lua que a noite pintou quando estava mal disposta.

 

1.                  É água dourada de uma torneira que não para de jorrar.

2.                  É cocó de galinha estouvada que só bebe groselha escura.

 

1.                  É um bronzeado já ressequido de uma praia intranquila.

2.                  É uma pen desmazelada que, coitada, não armazenou bem os dados.

 

1. É uma colheira de limões cheia de minhocas no interior.

2. É o bater das asas dos morcegos nos seus voos tardios.

 

1.É uma contadora de histórias e a sua sabedoria nos campos de trigo.

2. É o catarro de um fumador cuspindo o chão de uma rua em silêncio.

 

1.                  É o meu isqueiro chamado alegria que acende qualquer forma de magia.

 

2.                  É a cor das letras do meu perfume, juntas formam Sofia e Sara.


Iguarias em cascata


Quero respirar um ar que dizem que é fresco e que traz iguarias em cascata mas não sei onde habita, se é que vive em lugar algum. Devo acreditar que existe tal ar, se nunca sequer vi um pequeno malabarismo dele? Existiu uma altura, chamada ilusão, em que o senti como ondas rebentando aos meus pés. Agora quero pressenti-lo por aqui e por ali e não sei se jogo bem aos dados de encontrar o seu caminho.

domingo, 11 de maio de 2014


Sonhar

Era uma vez uma menina fantástica que sonhava o céu mais bonito do que ele era pois via nele cerejas que se emaranhavam umas nas outras para fazer fogo-de-artifício em todas as cidades transformando-as em barcos de piratas brincando aos tesouros escondidos. Ela saltava à corda nas nuvens desenhando os horizontes da sua fantasia e oferecia essas cores de vida, em risos, a toda a gente. No seu voo solar habitavam mil segredos sempre prontos a serem contados e ela soprava-os ao teu ouvido. O seu sonho ela sonha junto de ti. Esperam-te mil passos em frente, seguindo-se outros mais.


Ela
 
Tinha de ser do jeito que ela queria, e ela era uma espécie de magia. O seu sorriso levantava voo e o mundo seguia-o, parecia quase uma ordem a ser cumprida. Deusa era quando queria que os olhares fossem todos joias reluzindo perante a sua pompa e circunstância. Pediam os seus conselhos, desde a mobília até ao chapéu do moço, e mudavam até a música que ouviam. Os percursos eram por ela escolhidos e quem ficasse no cais perdia a sorte de um trilho para o paraíso, segundo dizia. A sua beleza desnudava qualquer um e quem se aproximasse demasiado gozava a vida num esplendor ilimitado. A noite era sua amiga pois nela fazia as suas tropelias e confundia quem encontrava no caminho com a sua alegria. Quem a conhece sabe que ela é mais do que aparenta, menina de um coração repleto de ouro.


Filosofia de pacotilha

 A filosofia queria ir para além da sua pequenez
E estreou-se na magia
Fazia desaparecer elefantes-bailarinos
Que voltavam pirilampos
Estes execravam cantar
Pois qualquer canção distraia a yoga que faziam
Tentou lavar ruas resumidas
Com um chuveiro de jubas de leão
Que logo enlameou o chão
E derrotou o alcatrão com o peso de quinquilharias
A filosofia desejava a mestria da sabedoria
Atirou-se ao alvo:
Aprendeu a contar histórias de embalar
Porque tinha de se enfiar num qualquer buraco

quarta-feira, 7 de maio de 2014



Certas ruas

Eram ruas que se desequilibravam como se lhes faltasse a bengala, ruas de cidade nas quais ninguém investia qualquer quantia. Passeavam por lá lobos solitários e gentes que não sabiam a quantas iam. Pensamentos tortuosos deambulavam e diziam boa noite a outros, outrora sensatos, agora decadentes. A lua surgia sempre com os seus murmúrios entristecidos nessas ruas que cambaleavam juntamente com os cães desabrigados do vento que lhes roía o seu âmago. Uma senhora falou e ninguém ouviu, falou horas a fio. Parecia autêntica filosofia mas o ruído do silêncio permaneceu nesse dia nas ruas que são agrestes a tudo o que é diferente de cruzamentos e cruzamentos sem saída. Um estrangeiro quis atravessá-las com a sua bondade mas foi afastado com uma maré de obscuridade. As ruas estão repletas de frases arruaceiras ditas por criaturas de pouca virtuosidade e engolidas em seco por homens de barba longa. Faltam-lhes destinos, tropeçam nas pedras que estão no seu próprio caminho.

O Café e a Saudade

Quando um coelho bebe café a mais o seu cérebro incha e explode ideias em corrente elétrica que surpreendem os empregados que se tinham esquecido das suas existências. São ideias que disparam tiros de assombro na direção de qualquer um, é preciso ter traquejo para falar com elas e uma inteligência velhaca acima da média. Aproveita-se, no entanto, o abstrato conceito de Saudade, sugerido como “a insuportabilidade de uma dor incompreensível”. Talvez este conceito seja fruto de uma saudade sentida como apertos magoando o coração, falhas cardíacas, contrário a uma respiração forte do coração. Um coração com força que vive da permanência.


História da Minhoca
 
Era Inverno e uma minhoca não queria sair da casota porque tinha perdido o seu cascol preferido. O seu amigo castor visitava-a todos os dias e raptou-a para o meio da floresta onde vivia para ela apanhar finalmente um pouco de ar fresco. Ela entrou em pânico e pisou uma formiga sem querer. As outras formigas viram e foi um grande sarilho, rebelaram-se e começaram a comer-lhe os olhos. Ela ficou cega, não conseguiu voltar para casa e pernoitou numa clareira cheia de frio. No dia seguinte, cheia de fome, procurou a árvore mais próxima e começou a comer uma folha. As outras folhas rebelaram-se e começaram a come-lhe as patinhas. Depois disto ela mal conseguia andar. Cega e coxa, ela começou a chorar. Um pássaro que voava pela zona deu por ela, fez voo cerrado, apanho-a certeiro, voou até ao seu ninho e deu-a de comer a uma das suas crias esfomeada. Resumindo e concluindo: sacana do castor!

A vida é muito estranha. Agora acredito em Deus e noutras coisas ligadas ao Divino. Estranhos fatos ocorreram na minha vida para isso acontecer. Era 100% ateia. Mas comprovaram-me o contrário: determinados fatos que me levaram a aprofundar o conhecimento sobre o ser humano. Tenho tentado explicar às outras pessoas. Mas elas não acreditam. Acho que só passando pelas experiências. Experiências religiosas, acho que se pode dizer assim, muito fortes. Embora não estejam ligadas a nenhuma religião. Sempre achei essas experiências estranhas pois são coisas muito diferentes do que se passa no dia-a-dia e na vida normal em sociedade. Há muito mais mundo para além deste mundo que conhecemos perto de nós.



Sugestão

Uma cantiga saiu a correr, a correr à procura de dentes de leão para comer uma sugestão. A sugestão era do tamanho da boca de um sapo escancarada, um caso de difícil solução. Os leões tinham ido à caça da bicharada e estavam a demorar mais do que o habitual, a cantiga em desespero dizia: “a sugestão quer dar comigo em doida”. Apareceu um leão com três dentes e emprestou-lhe um em troca de um verso seu: “ó leão, és o rei de todas as coroas”. Ela foi comer a sugestão mas ela não se deixava engolir. Eis que aparece o SOS: “dá-lhe uma marretada na cabeça”. E assim foi: a sugestão levou uma marretada na cabeça e abriu logo a garganta.



Tempos
 
As pessoas gostam de andaricar por aqui e por ali com fatos de banho de Inverno porque nunca sabem que tempo vai fazer nestes novos tempos de incerteza absurda em que os ratinhos de ruas estreitas têm insónias e contam histórias sobre como era viver no campo enquanto brindam a um futuro sem raticidas. As pessoas apontam o dedo ao bêbado maltrapilho que se senta todos os dias no mesmo café, na mesma mesa e ele conta-lhes histórias de outros tempos em que era prisioneiro do fato e gravata, quando era um homem de negócios inútil. Agora, bêbado e maltrapilho, quando andarica nas ruas estreitas à noite jura ouvir conversas sobre como era viver no campo noutros tempos e como o mundo seria melhor sem…raticidas.


Agora sei porque não puderam ficar, pena não me terem dito. Era escusado tanto sofrimento. Eu não teria expetativas. Não tinha ficado à vossa espera, não teria sido uma pedinte. Tinha ficado sozinha na mesma mas sabia que estava sozinha sem essa dor de me sentir abandonada e de querer saber de vocês. Afinal de contas o que estiveram a fazer na minha vida se sempre me deixaram sozinha? Pode-se dizer: eu não era importante o suficiente, não podiam dar mais, eu era muito exigente. Fosse o que fosse. Não faz sentido estarem na minha vida. Não puderam ficar porque não gostam verdadeiramente de mim.  

Sofia


Andorinha-intranquila


O sorriso da andorinha-intranquila


É mais espaçoso do que o próprio mar


Ri-se na hora exata em que o lobo junta a matilha


Para ir à caçada das galinhas


E desabrocha sempre quando o marinheiro


Está a pescar o pescado que cantaroleia


Ela voa num grito suave


Abrindo as janelas para ondas célebres


Ondas com perfumes afrodisíacos


Que ela espalha pelas escamas dos camaleões


Com cores estrangeiradas


Ela conhece as versões de todas as bússolas


E encontra ouro verdadeiro nas suas agulhas


Como as suas asas são feitas de embarcações


Ela sobe em alegria


Intranquila


sexta-feira, 2 de maio de 2014

"Não [me posso esquecer] de que a minha vida é a maior empresa do mundo.
E que posso evitar que ela vá a falência"



Fernando Pessoa


Só eu posso fazer isso, evitar que vá à falência, apenas eu.
E como é grande a minha empresa, ocupa o meu tempo todo.
E se for à falência, o que faço sem ela?
Tenho de me agarrar ao cimo do abismo.
Não descer por ele abaixo.
E ir por outra direção.
A outra direção, mostras-ma?