sábado, 19 de julho de 2008

Há uma linguagem que sonoriza os sons da tua paisagem numa miragem que é a verdade mais pura que senti...
Está a fazer-se cada vez mais tarde, e eu até me enfeitei preparada para ir a uma festa, mas há festas que servem a natureza ao contrário e duram ponteiros escravizados de linhas a torto e torto e não há porto que as espere…
"ainda que pareça que a vida a sepultou, ela está aqui a escassos centímetros"

(António Tabucchi)


(Joseph Cornell, "Hotel Eden")
Problemático

- Que parvoíce Marta…
- Parvoíce, o quê…?
- Andares a pensar nisso outra vez… Nessa história da tua colecção das conchas com esta chuvada, esta terrível tempestade. Vais para a praia assim, nestas condições, estás a regular bem da cabeça ou quê?!
- Mas posso pensar não…?
- Podes sofrer sim! Mas pensando bem, sempre foste um bocado masoquista… Porque é que não vais estudar física quântica, tens exame amanhã e ainda não estudaste nada…
- Mas as conchas, as conchas Elisa…
- As conchas estão lá, no mar, na areia, estão felizes… Se chumbares no exame é que é problemático!
São todas as cartas que te escrevo para tu leres… Nos sinais de trânsito, quando por acaso não sou atropelada, quando canto no autocarro uma canção de amor e todos ou quase todos ficam a olhar para mim, são os croiassants que compro porque gosto, são os dois maços de tabaco só para mim, os brinquedos que qualquer criança gosta porque acho piada, são os mil poemas de amor pensando em ti escritos em duas semanas, são as conversas que tenho contigo tu que não existes mesmo tendo existência… Ainda há pouco deixei numa caixa de correio uma mensagem com o meu número de telefone, caso alguém soube-se de ti. Mas tu gostas de outra, contaste-me tudo, eu disse-te para não seres parvo, para ires ter com ela e agora aumentei a minha dose de tabaco, de brinquedos, de croiassants, de músicas de amor que canto sozinha em qualquer lado, os poemas cantando este amor, a minha existência sem ti… Talvez num desses sinais de trânsito, numa qualquer rua que atravesso sem olhar o poema não me proteja…
Enormes são os desertos, um mundo que é demasiado incerto, permanecendo como o arrefecimento do sonambulismo que nunca desperta, apenas com o acordar dos cães que mutilam os gritos das pernas. Areias grossas que não caminham é certo, o tempo que derruba chorando as palmas calvas das mãos. Desertos, são ventos violentos em rostos que já não sabem correr. Diz-me, diz-me que te ouvi dizer…


(Joseph Cornell, "Constrution")
Marcelino, conta-me como é que um um burro foi ao peixe e disse-lhe que o sol era estrelado? "Ora, estás enganado, as estrelas são vasos que guardam segredos." "Segredos? Elas mentem com quantos dentes têm!" "Por isso estão sempre a sacá-los nos dentistas conceituados..."
Ouve-me, ouve-me que o dia te seja azul, nesse passeio de pombos. A hortelã cresce sem parar, ao longo do olhar dos pombos que fingem não olhar. Ouve-me, ouve-me, que o mar, esse meu azul te entre por todas as janelas abertas do teu olhar coberto do desse cheiro falando a hortelã.
sento-me nas minhas rimas
faço o caminho das ervas
que reservei para esta manhã
não sei a direcção do sol nem de julho
tudo parece uma animação invisível

hoje não chorei de manhã
colei os nomes em latim dos animais
perguntei-lhes a direcção do sol
todos eles ladravam como cães da alegria

as linhas fazem correntes de ar
enquanto escrevo o que a mim me devolve
porque nem sei o que quero escrever
há nomes e nomes
há sons dilatando-se
deve ser o calor que vem do sol

quis saber onde se escondia
o absoluto das cousas todas
dessas de que fala a filosofia
mas apenas consigo arrancar a emoção
O reinado dos céus foi eliminado por razões profissionais. Ficou deveras descontente, rebelou-se, deram-se grandes tempestades e até furacões imparáveis, apareceram leões ferozes, terríveis térmitas, pavorosas piranhas. A realidade manteve-se impávida, mas via-se que estava um pouco perturbada. Resumindo: mais vale eliminar o reinado dos céus, perturbando a realidade, do que ser céu o dia inteiro e nem sequer perceber o seu estado, até porque no reinado há sempre a dúvida e leões ferozes, terríveis térmitas, pavorosas piranhas desfazem reinados, e outras espécies de hierarquias.
Porque acima de tudo o que conta no Ser Humano é o:

HUMANISMO