quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Lá fui ver um filme francês meio amalucado, como costumam ser quase todos. Podias ter ido vê-lo comigo, é pena…Já viste que te ando a pôr muito em causa, tem de ser, tenho de manter uma certa sanidade mental. Era só para te desejar uma boa noite. Talvez possas sonhar comigo sem dares por isso, ou quem sabe acordares lembrando-te do sonho. Bem vou deitar-me, se o teu edredão for tão bom como o meu fico contigo de certeza. Je t'embrasse doucement.
Enviaram-me uma carta da clínica de oftalmologia a que eu fui quando tive de usar óculos. Acontece que eles não avaliaram bem os meus problemas de visão, portanto continuei a ver mal. Acabei por ir à médica da minha avó, numa ruazinha escondida de Moscavide. Agora é possível eu ler a carta, mas não me interessa nada o seu conteúdo: vão mudar de instalações, mas eu não tenciono voltar a lá pôr os pés. “Manteremos o mesmo profissionalismo”, dizia também a carta. A quantas pessoas vão eles continuar a engasgar os olhos? Depois, se bem me lembro, tenho problemas em ver ao perto e também em ver ao longe, o que explica a minha “relação” com o rapaz. Agora quero que ele me saia da vista. E quanto ao futuro vejo muito mal. Não tenho nada contra ele mas acho que se trata de um problema de compensação. Porque a minha vida é um deserto, um vazio e é fácil ser preenchida por uma fantasia como a do rapaz. Há um coração vazio há muito tempo por onde entra facilmente o sonho de um grande Amor. Existem carências afectivas que precisam de gestos e palavras. Há a escuridão que necessita de me largar para eu viver, e há a ilusão de que esse rapaz pode ajudar. No entanto, após o pensamento dele passar o meu mundo continua na mesma. Mas sim, não passa de uma compensação, de toda uma vida que precisa de ser preenchida. Ele cai que nem uma luva. As memórias daquela noite caem que nem uma luva. O problema das memórias é que tornam tudo perfeito e o das fantasias também. Em momento algum desta história estou no mundo real. Eis o perigo dela. E é incrível como tenta chantagear os meus dias. E eu não tenho nada para lhe dar. A não ser esta criatura obsessiva que se vai queimando no seu corpo. Mas é preciso ter a noção de que o rapaz não “possui” o meu ser. É verdade que está cá bem dentro, mas não dorme no meu coração. E jamais uma fantasia dormirá dentro do meu coração. Isso não faz sentido nenhum. Não vamos confundir obsessões com sentimentos reais. Fantasias com pessoas reais. Estou muito chateada, penso demasiado no rapaz, acho bastante prejudicial, como já tenho dito. Isto não pode continuar assim, mas é complicado de controlar. É tão complicado, sinto-me um rato numa gaiola sempre à volta com estes pensamentos. É doentio.

(Carel Fabritius, "The goldfinch")