E continua a segunda série de poemas que cantam o Amor enquanto ideal:
talvez seja o momento
de tornar inabitável o deserto
e respirar pelas tuas mil bocas
dizes-me que há esperança
no impulso de ti
se eu falo palavras
o teu olhar é infinito
diante de mim tudo se abre
eu vejo agora como a vida
transparece na tua cintilação:
a tua promessa abre-se
dentro de mim
P.s.: olha que eu não tenho nada contra o deserto real, leva-me a ver a imensidão da areia infinda... leva-me contigo numa viagem...
Um outro mundo na amadureza do ser que foge do som das luzes que o separam das suas qualidades, nessas perguntas que não sabe ser. No balcão velho não compra nada. Ó velha, o que vendes? Os sons dessa voz rachada leva-os para uma cova, eu só quero o carvão para fazer o cabelo de ouro, essa cara que agora é maldita, uma terra cultivada com as mãos da morte e sacos de sementes da vida. Cumprimento o homem da tasca, cruzámo-nos entre as nações vencidas, mas agora o fim do dia, o começo da noite é a nossa marca e impacientes determinamos o passo. Diz-me ó beleza, cercada por lobos, porque não vais a lugar nenhum? Porque a cozinha onde trabalhas-te antes, no dia claro, era manchada de óleos e agora és manchada de excesso de bâton. O jovem que exaspera quer saber sobre a vida, mas sobre a vida nada se sabe, recolhem-se histórias que no outro dia são mentira e a lenha da noite que ardia alta já se apagou entretanto afastada do mundo. Há escaravelhos deslizando na noite, há também uma tenda de circo abandonada, um pedinte que nada pede, a não ser o medo que já sentiu. Roubas-me a cabeça de mergulhadora? Porque não consigo deixar de sentir este ímpeto? Há gritos na noite, não sei o que dizem, são altos mas desfalecem e deixam o meu olhar vazio. Há igualmente tragédia na vida dos príncipes, elas estão cheias mazelas, como tu também estás. Perdido pelas ruas, movendo esses passos rápidas, como se a saída fosse no fim de uma rua. Cruzaste com quem talvez te pudesse indicar o percurso e nem te apercebes. Tudo o que sentes é desassossego e vês o luar mais do aquilo que é, como se ele te pudesse assassinar. Queria dizer-te apenas que o mundo é maior que essa lua que julgas negra, queria dizer-te qualquer coisa que me deixa-se aproximar-me. O meu olhar projecta-se agora na velha de rugas salientes à janela na noite tardia. Fez-me deslocar o olhar essa face cavada de uma tristeza absoluta. Rega as suas plantas vistosas, plantas altas de flores coloridas. Os restos da água salpicam a rua. Ela viu-me olhando-a e esboço-me um tímido sorriso nervoso. No entanto, agora queria dormir, estava estafada. Não sabia onde, não tinha casa, aquela casa das pessoas que têm casa. Encontrei uma porta qualquer, gostei do nº 66, Rua Jaime Leal, encostei-me à porta de madeira antiga e tentei em vão dormir. Tudo na noite era agitação. As luzes foscas da rua, o passeio e os seus puzzles, as formas estranhas das outras portas, as plantas demasiado diversas nos vasos dançantes, as gentes que já dormem ou não, as estrelas lúcidas, a tal lua do rapaz desassossegado, os lobos escondidos no fim das ruas, os gritos que continuo a ouvir na noite, talvez uma alucinação minha, as pingas de água caindo da varanda como uma chuva miudinha. Tudo são sons e ruídos que perturbam o meu sono. Até que adormeci, não sei bem quando. E sonhei, sonhei tanto que não sei o que foi real em tudo isto, nestas histórias da noite que se desfaz em fragmentos que se movimentam na vulnerabilidade dos sentidos. Mas assisti com tal lucidez a estas imagens que só podem ter sido reais. Quando acordei ainda era cedo e estava com muito frio, tive de caminhar, caminhar para me aquecer. Este corpo gasto da noite, gasto de tudo nesta vivência de cara maldita, com uma juba de ouro caindo sobre o deslumbramento da visão, caindo sobre o começo do dia.
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