quinta-feira, 17 de julho de 2008

Essa semente que se eleva em camadas até ao pico inefável das danças faz-se sempre vislumbrar, num abre e fecha de olhar, uma voz de realejo, o som de um beijo...


(Rohan Beal)
A estrada é esse sentido que anda nos cubículos dos passeios sem dimensão definida, coroada de pequenos luxos de sujidade e saídas limitadas. Dizes-me que há um sentido que lhe dou ao escrever-lhe uma outra e outra razão, mas se abro os olhos há uma palavra descrita que perde rapidamente a sensação. Quem vai pisando o chão diz que está quente, eu digo qualquer coisa, porque tanto faz neste tempo em que o que vem até mim é algo que se move lentamente ou é uma estátua no meio de um centro de mil avenidas.


(Matthew Woodson)
"Digo-te, Alice, que podes acordar
e beliscar o coelho de cartola,
o musaranho, a rainha, o gato,
podes jogar croquet.

Mas depois adormece lentamente
e sente a minha mão sob a saia de folhos."

(in O Escritor, nº 23) - Pedro Tamen

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Da minha autoria:


Digo-te, Maria Carminda, que podes tomar
esse pequeno almoço
e beliscar a tua pele que fica sempre vermelha
como o mar lá do longe
E seguir o som dos barulhos
a maresia, as rãs que já nem dás por elas…
Esses sapatos gastos Maria Carminda
não te preocupes
o vento leva-os no ar
Podes jogar a qualquer dia da semana
porque o tempo nem se entende

Mas depois adormece lentamente
e sente a minha mão sob a saia de folhos

Sente como quem quente
a rainha não vê
Ela está a brincar com o pente
as rainhas são sempre vaidosas

Não adormeças tão depressa
ainda tanto há para sentir
Mas o beliscão sentes,
ou preferes a ternura que guardei
todo este tempo para ti
debaixo do vento?
Pequenas alterações de um poema de Al Berto de que gosto muito:

ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua voz
cantar a próxima esquina
e o teu olhar possa ser o passo seguinte

vai até onde seja ouvida essa voz
uma voz falando ilimitada
liberta como os desejos das mãos e dos frutos
reconhece-te caminhando por esses campos
que correm atrás de ti e levam fontes nos braços e pernas
as crateras nunca extintas mostram-te: vai por essa porta
de vales tão vastos quanto os começos dos dias

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as suas loucas flores que o oráculo te falou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o verão te traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu eterno coração - ouve-me...


(Marlene Dumas, "Faceless")
ZOOLOGIA

Na gaiola, o melro não tem bico mais amarelo
do que fora dela. Encolhe-se a um canto,
coitado, e parece envergonhado;
- embora esteja ali por culpa de quem lá o meteu
Sabendo que um melro não cai do céu.

Há pássaros assim, que qualquer um
mete numa gaiola, apesar do bico ser amarelo.
Não cantam. Não voam. Não falam.
São pássaros cegos
com a mudez dos oráculos e mudos
com a lucidez dos profetas

Perfeitamente por acaso, abri-lhe
a gaiola. E ele deixou-se estar, sem sair
nem entrar.

(Nuno Júdice)
Se olhas para o lado não vês este carrossel do tamanho do sonho que se espreguiça. Ouvi dizer que eras um urso do pólo oposto, mas os moldes são sempre imprevistos. Viste o tamanho do desejo que o gato comeu? Estavas algures no céu, esse olhar rondando o azul que nunca se come esquentado. Fiz-te um esqueleto, a tua pele deu-lhe um dia de arranha-céus. Lá estás tu, o olhar no alto… Se olhas para cima não vês a minha cesta de limões, embora o seu odor atravesse balançando o caminho. Olha em frente, de repente podes ouvir as notas de um violino. Vibrarão cantos nos recantos, se apenas olhares onde estou…
Um verso que esmaga esse modo com que o mundo esfriou o corpo uma vez mais, deslocando o centro para a periferia e a maré bate nas veias como rochas, o que senti foi ficando atrasado dias e dias, fez-se ausência. Os sonhos não são mais do que a ausência e o amar uma forma impossível de encontrar o fundo dos teus olhos, mas eles na verdade nunca tiveram existência.


(Mário Zanini)
Não há pressa presa no poema, não há pressa porque a monotonia ganha peso à frente do comer frio, como esse pesadelo mal recordado da noite anterior e mais abstracções em que me torno. Pensa, digo. Eu penso, nas recordações, tento encaixá-las em emoções, fazê-las voar como balões. Telefono-te para te falar das minhas angústias, mas poderia também não fazê-lo, porque o reflexo do vazio encontra-se vezes sem conta consigo mesmo. Não nego que chore sozinho, porque a solidão sempre doeu, mas no centro roda o compasso, e ele continua o ritmo.

Ian