Antigo
Sou um pássaro azul e o meu voo é o mais azul de todos. Respiração rápida, livre se levanta, onde tudo começa, numa rajada de ar única, rompante como a abertura do céu, num desejo perfeito no espaço límpido que deseja ascender a todas as margens e futuros além.
Carpinteira
os mortos, os mortos… eles têm os rostos inchados, os rostos chupados, eles nem sequer ouvem a tristeza do nosso coração infinito… consigo amar-te até seres, mas deixaste de o ser nesse rosto frio, morto… morto… que esfriou com o passar das horas… eu corri ao teu encontro nesses dias em que eras minha e tudo nos pertencia… levantas-te voo… não consigo correr mais porque não me devolves o olhar… os mortos, os mortos, eles não têm mãos, nem dias para gastar, nem dias, nem novas paisagens… eu não tenho de me despedir pois não? essas memórias carregadas das tuas imagens são o meu coração respirando o que foi a tua canção… deixaste de cantar onde agora a vida é cinzenta escura neste céu que cobre a minha vida… há vestígios de tudo o que foi e permaneces morta, tal como os mortos que morrem nessa solidão terrível, aquela a que te acorrentaram… os mortos, os mortos, estás morta e permanecerás morta nessa violência com que te atravessou o medo… correste a liberdade, correste até te cansar a vida… um órgão que derramou e tudo acabou… prenderam-te, amarraram-te e esmagaram quem devias ser… morreste e não soubeste morrer porque querias correr… porque o ar sabia a liberdade… os mortos, os mortos, incham e calam-se e são para sempre livros fechados… lembro-me de ti… acariciei o teu cabelo nos meus sonhos e fiz-te rir, fiz-te rir muito… nos meus sonhos ainda sabes o meu nome e sabes que sou aquela que nasceu primeiro… devolves-me as nossas horas? as músicas que ouvias, os cordéis que fazias, as brincadeiras… o som do vento não diz nada, já não estás aqui, apenas o veneno de um rosto e um corpo que irá furar o chão… serás sempre luz, serás sempre o riso que ri comigo… porque não te podes rir agora? esse riso crava-se no fundo da minha pele e levanta-a deixando-a na desolação… mas sim, ri-te, ri-te, porque na verdade é tudo o que possuímos, é tudo o que possuímos …
Carpinteira
A minha tia Lita morreu ontem. Ela tinha o síndrome de Down e era a segunda filha de seis filhos que a minha avó teve, nasceu logo a seguir ao meu pai. Lembro-me bem dela na minha infância. Não percebia bem a doença dela pois era nova demais, mas gostava de cirandar à sua volta quando estava em casa dos meus avós. Sei que foi feliz, acho que sim, toda a família a adorava e na Casa de Saúde em que esteve a partir de certa altura fez amigas entre as outras pessoas. É isso que interessa não? A minha imagem dela sempre foi e será aquele sorriso, aquele riso só dela, o sorriso, o riso à Lita de felicidade.
Sara
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